2007-12-26

Caixas

Arrumo a vida em caixas. Alinho-as, empilho-as, encho-as de mim, de objectos e de vivências. A casa fica diferente como se aos poucos me desvinculasse, me esquecesse, me libertasse e me arrumasse, também, na desordem emocional que por vezes sinto.
Fica tudo empilhado e, em alguns pensamentos, questiono como seria se do seu conteúdo me libertasse. Se abrisse a janela, na noite de passagem do ano, poderia verter o peso de papéis, de livros e de pastas. Poderia deixar voar os anos de acumulações. Ficaria a memória dos livros, permaneceria a vivência que não carece de papéis, quedaria a música que me acompanha no silêncio. Ficaria eu.
Porém, empilho as caixas com medo que a memória me guilhotine o passado. Reúno e lacro as caixas com medo que a janela aberta esvoace o que sou e o que fui. Arrumo. Acumulo. Lacro. Monto caixas. Arrumo. Acumulo. Lacro.
Seguir-se-á depois a manobra de reorganização, interna por certo, e que se faz acompanhar da reestruturação das gavetas, dos armários e das prateleiras. Com ela volto a remexer as cartas, as anotações, os escritos e, por isso, volto a posicionar-me naquilo que esqueço e na certeza de que é nessa exploração que conheço o meu processo de crescimento.

2007-11-19


(Batalha, 2007)

2007-11-08

Sombras

Abeirou-se devagar. Irritada por cada passo inseguro e com nuvens cinzentas no olhar que a impedem de ver as cidade onde criou o filho e a quem ensinou as ruas que agora lhe são desconhecidas. Estranha-as como um estrangeiro.
Aproximou-se e reteve-me, provavelmente, como uma névoa vermelha. Reteve-me para além daquele instante. E a sua imagem cercou-me nos dias e nas semanas que se seguiram.
Indiscretamente bolsou as histórias cegas de sombras, de artérias impiedosas e desalojadas de acolhimento humano. Não reconhece, agora, o norte da cidade, as esquinas de panfletos de actividades e espectáculos coloridos. Não reconhece o caminho. Resta-lhe a memória decantada nos saltos gastos de caminhar e no silêncio indiscreto dos que considera olharem para ela.
Vem aprumada porque as idas ao doutor assim o definem. Perfumou-se com a água-de-colónia que usa nestas ocasiões. Não sabe se a cor do frasco estará, já, desbotada porque continua a reunir a essência dos anos de hábito e uso. O olhar é que desbotou, perdeu a cor e com ele o aroma da segurança.
Vem sozinha porque “as vidas agora são assim”. O filho falou-lhe do autocarro que pára ao lado correio. Sabe o número e imagina o percurso que o autocarro possa descrever. Sabe-o no seu mapa mental e emocional mas não no real. Por isso, não sabe agora onde fica a passadeira para atravessar a rua, nem em que sentido deverá ir.
Precisa de ir ao doutor antes que o perfume esmoreça. Exige uma passada rápida enquanto há luz e as sombras são menos endiabradas. Necessita de ir antes que morram as memórias que a auxiliam a reconhecer a calçada da praça. Força-se a ir para salvar o que das sombras resta.

2007-10-21

Cântico Negro

"Vem por aqui" - dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...

A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre a minha mãe

Não, não vou por aí!
Só vou por onde Me levam meus próprios passos...

Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...

Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
- Sei que não vou por aí!

(José Régio)




2007-10-06

Saída




Separo-me das folhas arrumadas na gaveta que tinha como minha. Separo-me dos risos, da persistência do riso e do granulado das histórias descobertas. Separo-me e levo um saco, um saco de plástico frágil, onde arrumo os meses de trabalho e de dedicação.
Passo a mão na gaveta e limpo-a das pequenas parcelas de papel, dos instantes pintados por canetas e de algumas migalhas de bolachas partilhadas.
Despeço-me sem me querer despedir. Avanço firme, com o saco na mão, com o peso do saco, com a tensão nos músculos inerente à saída. Avanço em direcção à rua sem evitar a dor na garganta que me suspende a visão sensata e clarividente. Executo acções deprimidas e confrontadas com a aspereza do desafio que me espera.
Espero, com a saída, financiar novos projectos marcados por campanhas de partilha, de fome de construção de um projecto comum mais exigente, envolvido e valioso. Financio-me enquanto pessoa fora dos sistemas profissionais ainda que deseje incluir-me satisfatoriamente na organização do trabalho.
Saio num dia quente, claro, descarado. Há um calor intenso que não se distribui uniformemente pelo corpo. Saio num dia quente e aproveito o final de tarde deitada no silêncio e na escuridão. Fecho a janela, ligo a televisão sem som, cubro-me com uma manta e candidato-me ao Inverno, como se adivinhasse os dias cinzentos e frios que se aproximam.

2007-09-04

Em Tralhariz

As paredes descerram apontamentos de vida simultaneamente dolorosos e adoráveis. O estuque começou, já, a cair e denuncia as antigas formas de construção: ripas alinhadas com uma espécie de barro. As cores estão esbatidas em conformidade com a austeridade de vidas de arruadas contra as dificuldades.
O sol entra e encadeia a mesa das refeições das visitas, o louçeiro, as cadeiras e o frigorífico, que se arruma na sala ao canto das janelas. O sol entra vindo do rio, das escarpas vinhateiras, da luz reflectida no xisto, da paciência dourada das uvas, do muito silêncio de que os grilos se apoderam à noite. A luz cativa o fio dourado das chávenas de chá compradas em Cedofeita e entorna histórias sobre o preço (trezentos escudos) e sobre o modo como se amealhou aquele valor com o fio, também, dourado do azeite.
Não se descobrem excessos na casa. Não se tropeça no inútil e no omisso. Acomodam-se os utensílios, os aspectos e as ferramentas verdadeiramente necessárias e significativas. Tudo se arruma em lugares determinados há mais de quarenta anos: o açucareiro de loiça, as jarras para o vinho, a tenaz da salada e os guardanapos de papel no louceiro da sala. Na cozinha, penduram-se as panelas areadas pelas quatro gerações, arruma-se o queijo no mosqueteiro azul e guardam-se os guardanapos de pano na gaveta do louceiro da cozinha. O armário da cozinha é forte e é de madeira escura. Nele se alinham as canecas das avós, das tias-avós e das bisavós que o tempo e a segurança de mãos maduras não deixaram partir.
Os aspectos significativos espalham-se pela casa. No armário da cozinha ainda se arrumam brinquedos: um pequeno galheteiro azul que eu recebi de prenda quando tinha cinco anos e um conjunto de utensílios para cozinhar (tábua, rolo da massa e escumadeira) que a minha mãe recebeu quando tinha quatro anos. Tudo parece permanecer impassível ao tempo.
Nas paredes da sala há memórias de brincadeiras antigas da minha mãe. Ainda permanece o desenho de uma menina com dedos feitos de riscos e dezenas de contas que indiciavam o percurso vocacional que a minha mãe viria a desenvolver. Contas e contas de somar cujo resultado era uma sucessão, lógica para um criança de três anos, de zeros. Muitos zeros. Redondos. Perfeitinhos. No corredor, ao lado da porta que dá acesso ao terraço onde se secavam figos, há a régua do meu crescimento: pequenas marcações a lápis que a minha avó (também minha madrinha) riscava no cimo da minha cabeça sempre que me achava mais crescida ou sempre que findava o período de férias que lá permanecia. Eu, esticava-me o mais que podia para ver a grande diferença entre riscos. Não me lembro quando deixou de me marcar na parede.
Sentadas na cama do quarto, onde tantas vezes comi batatas fritas ao som de trovoadas, a minha madrinha convida-me a abrir a caixa das cartas de namoro que trocou com o meu avô. Alinhadas, amareladas, envelhecidas. Diz que um dia gostaria que as lesse. Mas eu gostaria, um dia, que ela mas lesse, nesta cama, como se me adormecesse e serenasse das trovoadas ensurdecedoras.

2007-08-25

Sobressalto

Há detalhes perturbadores do silêncio que se instala: as mãos adormecidas em posição nenhuma e o olhar cansado das noites inquietas e demasiado quentes. O lençol cola-se como uma papa viscosa e aderente. A almofada regista os pensamentos demasiado dolorosos para serem ditos. São, por isso, omitidos num mutismo que afeiçoa os dias a cinzento e aplica retoques a um Agosto, vertiginosamente, invernoso.
Os sonhos contorcem-se com a alienação das manhãs e há a presença aterradora da noite. Longa. Quente. Sem sons. Confusa. Sobressaltada. Sobressaltada. Sobressaltada. Assaltada de todas as memórias. Demencial. Vazia de implicação de um sono profundo e sereno.
Os dias cosem-se, em seguida, com as malhas da noite e com a rotina. Como um espartilho. Como um espartilho afiado e cortante.
Dos dias quedam-se as desconexões e o boato de uma noite maior. Permanece a sedimentação branca das imagens, das fotografias, dos desejos, dos afectos, dos silêncios conhecidos e amados. Ocorre a decantação vagarosa dos sentidos. De sentir. Deste sentir comprometido nos rostos e nas expressões. Quentes. Longas. Sem sons.
Na decantação confusa dos sentidos, sobressalto-me.

2007-08-12

Viagem

Aparelhei o barco da ilusão
E reforcei a fé de marinheiro.
Era longe o meu sonho, e traiçoeiro
O mar…
(Só nos é concedida
Esta vida
Que temos;
e é nela que é preciso
Procurar
O velho paraíso
Que perdemos).

Prestes, larguei a vela
E disse adeus ao cais, à paz tolhida.
Desmedida,
A revolta imensidão
Transforma dia a dia a embarcação
Numa errante e alada sepultura…
Mas corto as ondas sem desanimar.
Em qualquer aventura,
O que importa é partir, não é chegar.

(Miguel Torga in Câmara Ardente, 1962)

2007-07-26

Desflorar

Ao fim de alguns anos a cadeira foi adoptando os meus trajei tos diários: o casaco agasalha-lhe as costas e o suporte para o braço possui, já, uma ligeira depressão para que o acomode. O casaco toma forma durante toda a manhã, enquanto eu me concentro nos mapas, nas salas e afino algum discurso penalizador ou pedagógico a distribuir aos formandos. Depois, e quando o visto, a forma emproada, altiva e, por vezes, orgulhosa do meu casaco dissolve-se no meu corpo. E passo assim nos corredores: emproado, altivo e orgulhoso.
Arremesso alguns olhares para o interior das salas e procuro que tudo esteja em ordem e sem imprevistos. Acautelo o acidental e o inadvertido. Tomo notas em pequenos papéis que gosto de cortar em quadrados milimétricos. Faço-o em casa, depois do jantar, sozinho à mesa da sala enquanto sinto os passos dela na cozinha. Componho uma pequena torre e arrumo-a no bolso interior do casaco para o dia seguinte. Tomo notas, pois, de tudo e distribuo-as na recepção, nos vigilantes, no centro, na coordenação. Escrevo com caneta azul, naturalmente. Vigio se há salas devolutas com luzes ligadas, controlo se os mapas estão alinhados na parede e se os formandos estão em ordem. E regresso à cadeira.
Com a porta fechada há o silêncio pesado, denso e, amiúde, difícil do meu isolamento. Nas paredes há o essencial: um calendário, o mapa das férias, a lista de contactos e um mapa de utilização de salas. Hoje, um grupo de jovens formandos entrou na minha sala e ofereceu-me uma flor. Inábil, não soube onde acomodá-la. Deixei-a em cima da pilha do lado direito. Traziam, igualmente, um convite para o jantar de final de curso. Dispu-lo na gaveta.
Revolvo os últimos vinte anos sentado nesta mesma cadeira e ouço o mutismo nos corredores. Talvez tenha havido algum convite semelhante que não recordo. Não sei se o terei anotado, algures, num pequeno papel quadrado contudo as gavetas estão vazias de contactos informais. Incapaz de processar os olhares expectantes, afirmo que irei, surpreendido pela promessa que não controlo. No quadro de cortiça fixo, com alfinete verde, a flor que recebi e anseio que não esmoreça o som das palavras na minha sala desolada

2007-07-17

Há cor no planeta


(fotografia do Matvei)

2007-07-11

Com a máscara...

Estranhamente, a profundidade não me assusta. No fundo do mar azul da “D. Ana”encontro algas, sargaço e plantas que parecem flores, que ondulam em silêncio e com suavidade. Vejo chocos, douradas e outros peixes que não lhes sei o nome: são claros com pequenos giros dourados, compridos com riscos castanhos e outros muito miúdos que, ao meu olhar de leiga, se assemelham a sardinhas. Movem-se organizados em grupo: compacto, unido, denso. Quando me aproximo, quando nos aproximamos, afastam-se e voltam a reunir-se, mantendo a mesma disposição, quase que milimétrica. É um movimento acelerado, apressado e intempestivo. Num fundo desconhecido encontro-me com plantas que parecem flores, com algas e com sargaço. Muito sargaço que se enrola em algumas partes do meu corpo e que espanta os meus movimentos acelerados, apressados e intempestivos.
A cadência das braçadas é aquela que é determinada pela música lenta do fundo do mar. Um fundo que parece fugir, que se ornamenta com estrelas-do-mar e que arrola rochas limadas pelo tempo e pela erosão das ondas. Olho o mais atentamente que consigo. Procuro esquecer as correntes frias que me arrepiam e a água que, dissimuladamente, vai entrando na máscara. Pretendo avançar em direcção a outras rochas e a outros escaninhos na expectativa de um polvo, um peixe colorido ou alguma lula.
Ouço a minha respiração como som principal: cadenciada e suave. Lenta. Vagarosa. Preguiçosa, até. Como se o acto de respirar fosse minimizado ao essencial. A quantidade de oxigénio exigido pelos pulmões e pelo cérebro parece ser ínfima. É a necessária para que o coração se emocione e para que possa colar na retina uma representação do que sinto.
Avanço segura, de mão dada, com as barbatanas azuis a penetrar as ondas ensonadas e a ensopar-me de imagens profundas, insinuantes, penetrantes. Estranhamente, não me assusto com a profundidade.

2007-07-05

Ainda por amanhar...

O movimento estará para chegar em breve. Falta, ainda, amanhar a raia e o atum. Espera que cheguem com rapidez. Habitualmente trazem-lhe o peixe à porta em grandes baldes. Os mesmos que trabalham em alto mar. Os homens, escamados pelo sol e pelo sal, param ali para beber uma cerveja, vender o peixe e falar da vida. Param antes e depois do mar. No Inverno é quase sempre de noite e está um vento duro. Agora os dias cresceram e na paragem matinal, na casa de pasto, já se vê ao longe o S. Gonçalo.
Tudo terá que estar pronto às seis: o peixe amanhado, as azeitonas em quartilhos, as batatas descascadas, a fruta à mão para uma eventual sangria e o cabelo arranjado. Atrás do espelho da casa de banho guarda-se um pente para dominar o cabelo da noite pouco e mal dormida. Faz um retoque final com um blush cor-de-rosa que comprou algures numa loja, esquecida pelo hábito de pouco comprar estes objectos.
Às seis horas abre escrupulosamente. Como se fosse esta a sua religião, o seu confessionário e a sua cruz. Monta e desmonta mesas, põe pratos, fala francês, inglês, um pouco de alemão e português. Entre as conversas em línguas estrangeira vai adicionando, como se de uma receita se tratasse, palavras e expressões em português, que provocam o sorriso nas mesas vizinhas. Condimenta o seu dia. Apimenta-o, enquanto soma totais a receber.
Serve mais sardinhas e pão, douradas e outros pescados que vai filando a um cardápio mental. Sabe-o há anos e anos de cor, desde o tempo em que era outro o patrão. No menu servem-se, e como que num desabafo mal contido, as reclamações contra a pouca agilidade das empregadas, que mudam como as marés, talvez por não conseguirem suportar as horas ininterruptas de trabalho.
Não há tempo para ir espreitar o mar que se anuncia do outro lado da estrada. Não sei se algum dia terá estendido uma toalha e permitido que o sol a aquecesse, que se autorizasse a deambular por pensamentos difusos e conflituosos disseminados pelo vento e pela areia incrustada na pele. Não há tempo. Falta pôr os talheres e os pratos na mesa 1 e na mesa 5 já pediram a conta.
Faltou tempo para acompanhar as dúvidas e as incertezas da filha adolescente. No mesmo enfiamento há, no olhar, o desalento por nunca ter amamentado ou caminhado de mão dada em direcção à escola primária. Ela cresceu mais rápido do que as mudanças de ementa. E por isso, o seu quotidiano continua colado a um ritual de que é impossível livrar-se.
Às duas da manhã, recolhem-se as mesas e as cadeiras de fora, alinha-se o aquário quase vazio enquanto se aliena das dores insuportáveis e deixa que as rugas, as olheiras, os sulcos cravados na tez descolorem o cor-de-rosa madrugador.
Num gesto, quase de certo, descontrolado e irreflectido permite que a cabeça tombe nos braços sobre a mesa, ainda com alguns pratos por levantar. Acaba por adormecer e sonha com o que estará para chegar em breve: a raia, o besugo e as conquilhas. Terão que estar amanhados às seis porque a casa abre, invariavelmente, a essa hora e o movimento estará para chegar em breve.

2007-06-28

A ferver...

Aguardo pacientemente a menina do Expresso. Fiz café de “cafeteira” como a minha avó e a minha mãe fazem. Sinto o aroma distrair-se pela casa, distender-se, aromatizar-me. Sinto-me, pois, segura.
Ela chegará com máquina fotográfica e papel em punho. Julgo que a querer outras palavras e a querer registar mais uma história numa amostra de tantos outros que no final do mês passam recibo, recibo verde.
Trouxe a minha caderneta de recibos. Está protegida num invólucro de plástico. Não quero que as páginas se dobrem, se estraguem e sujem. Guardo-a como se fosse isto que garantisse uma maior segurança profissional. Mesmo sabendo que este preciosismo não me permitirá amparar-me, guardo e protejo-a. A caderneta apresenta um rosto tão imaculado como se a acidez, as incongruências, o desânimo dos dias não tivessem passado por ela.
Ela estará a chegar... Uma das senhoras da limpeza dos condomínios lava as escadas com a abundância de água que não podemos desperdiçar. Torna tudo asseado e elegante como se adivinhasse a sua chegada. Como quem pressente a vinda do compasso pascal. Como desejaria que este compasso que se aglomera, que se envolve em inciativas em catadupa pudesse anunciar uma nova verdade. Como desejaria que este ritmado produzisse consequências efectivas e práticas na vida das pessoas. Decidi, pois, cooperar e expor o que sinto. O café já ferve. E eu aguardo pacientemente. Esta é, talvez, uma das capacidades que adquiri ao fim de alguns anos profissionais: a ferver pacientemente em lume brando

2007-06-11

Névoa azul


Uma e outra vez, deixo-me maravilhar pelo olhar sapiente e azul da existência feita experiência. A interpretação das subjectividades parece traduzir-se numa linha de pensamento tão clara e organizada que nela podem caber todas as compreensões imprescindíveis à exuberância de viver. No prolongamento sucessivo, delicado e renovado das palavras avanço na delineação do que imagino serem as histórias pouco comuns mas que convergem no que penso ser o denominador comum.
Numa manhã quente de Junho, numa das caminhadas a uma cascata inacessível em Travassos, marcamos o trilho ao ritmo de um dos senhores de olhos azuis. Um ritmo avesso a recuos, marcado pelos trilhos de pessoas e de familiares desconhecidos. Soubemos das vidas durante as ceifas, da merenda escassa e da tanta terra cultivada, e hoje abandonada. Ao longo do curso botas calcavam a terra conhecida e reproduziam outras tantas vezes este caminho feito. Soubemos das doenças, dos estudos do neto “estudante”, das viagens a França (onde ainda vive um dos filhos), a Lisboa e a Chaves. Mas a fonte de conhecimento, de tudo o que se afigura como necessário para a sobrevivência feliz, parece encontrar solução e resposta ao longo dos malmequeres, das vacas e do som de moscas agrestes e loucas que atacam os menos desprevenidos e desconhecidos da terra. Com a mesma segurança com que nos aborda encaminha-nos para a sua casa onde nos serve pão com presunto, bolo de iogurte e uma caneca de vinho partilhada a três. Tudo fica em cima da mesa, sem direito a toalha ou outras mordomias, pois com a mesma simplicidade, convicção e altruísmo com que enche a mesa entorna-nos o olhar de acontecimentos, de sorrisos e de uma presença calorosa e genuína. Prometemos voltar, num qualquer Fevereiro, com botas de caminhada para minorar os efeitos da chuva, do frio, da bosta e da lama. Aí, sim, poderemos ver a cascata, diz. É quando ela está mais bonita.
Dias depois, e a 200Km de distância, colido com a mesma genuinidade, com o mesmo tom de azul no olhar e com a mesma solidariedade. As vivências são agora outras, determinadas por uma vida construída de viagens constantes entre Angola e a aldeia de S. João do Peso. Um dos mais importantes projectos de vida expira, agora, longe. A Macaca, exploração de sal e peixe, deve agora ser ruína. Desse projecto ficaram as fotografias arrumadas e catalogadas com o mesmo rigor que permitiu construir um império no ultramar, e que se desbotou num tom sépia. Restam as memórias preciosas e minuciosas que me fazem emocionar no momento de despedida e que não quero mais esquecer. O projecto do sal e peixe foi bombardeado com balas de distância, de insegurança e de regresso à terra natal, há pouco mais de 10 anos. Aos 86 anos nega-se à tentação da televisão e da cadeira com manta e lança-se num novo projecto: ver crescer as oliveiras, os morangos e as frutas nas árvores, mesmo que para isso precise de mais dez anos. Na narrativa não assistem saudosismos rancorosos pelo abandono de cinquenta anos de trabalho. Existe uma profunda compreensão das vicissitudes, das mutações e que se exprimem na simplicidade de aceitar a bagagem experiencial como o lucro do ensaio.
Humildemente, estes acontecimentos determinam pensamentos que me compelem a posicionar num qualquer patamar de insignificância e de respeito pela névoa que encobre de entendimento o olhar azul.

2007-06-09




2007-06-05

Categorias de sentido

Para entrevista estão duas pessoas sentadas. Ela com avental e socas de trabalho, ele de olhar taciturno e profundamente calado. Levantam-se os dois quando digo apenas o nome dele. Acompanham-me ambos e sentam-se humildemente na sala iluminada. Do primeiro olhar inibi-me de solicitar à senhora que saísse, como faço habitualmente quando preciso de falar unicamente com o candidato. Abandonei a ideia quando me permiti ouvi-los.
Ela faz a vez de mãe. Ele a vez de homem. Possui dentes tão frágeis que parecem, ainda, de menino. As mãos parecem alienadas do seu corpo de rapaz. Têm rugas, fissuras, cor de trabalho, de terra e de cola de sapatos. Ele tem 18 anos e 10 de experiência profissional: na agricultura e, agora, na “Fábrica de vira”, diz. Vira é a designação da actividade que desempenha: virar dobras e dar cola nas gáspeas, taloeiras e nos canos. Tem recibo de vencimento e tem um horário de trabalho que todos recusam. A ele obriga-o a necessidade, a pobreza. Em casa estão mais 8 irmãos, todos mais pequenos. Em casa está um pai com idade de avô e uma mãe com idade de irmã mais velha. Tem, agora, telemóvel. Dá-me o número orgulhoso. Não tem certificado de habilitações, tem o 3º Ano incompleto do 1º Ciclo do ensino básico e os olhos desertos de aprendizagem pela possibilidade de experimentar um computador.
Há um silêncio profundo e constrangedor perante a folha branca. O olhar é, agora, de menino a reviver a história escolar fracassada e a aspereza da vida. Segura com segurança a caneta como se fosse esta que lhe permitisse rescrever a história e decora-la com figuras de estilo desconhecidas.
Há dias em que a análise de conteúdo das horas me obriga a redimensionar as categorias de sentido.

2007-05-28

Mosteiro de Arouca


Atrai-nos o doce das castanhas de ovos e das cornucópias melosas, provamos os diversos licores que os monges produzem como representativo de uma procissão de deleite. Compramos sabonetes de glicerina que a Irmã trouxe do Mosteiro de Armenteira e mel da região. Bisbilhotamos, mexemos, provamos, questionamos as tradições dos sabores e saberes da Ordem de Cister. Disputamos justificações sobre as vivências no Mosteiro, no Mosteiro de Arouca, e empreendemos a viagem pela cozinha, pela botica e pelos claustros.
As plantas aromáticas e uma magnólia rosa confundem-me os odores, fintam-me as sensações entre o silêncio e a ordem que se subentende no Mosteiro e a frincha que se abre ao público e ao comércio. No regresso, anseio pelo programa cultural que gostaria de empreender pelos outros Mosteiros: Santa Maria das Júnias, Alcobaça, Cós, Lorvão, Salzedas, Armenteira, …
Verto os desejos de voltar em cada gotícula que cai no vidro embaciado do carro. Observo, ainda, a imponência branca do Mosteiro e a imperturbabilidade da cidade. Arco-me de serenidade no retorno e só anseio pelo banho de imersão com o sabonete de lavanda.

2007-05-24

De regresso...

É veemente a energia de tanto querer falar… Os vocábulos metamorfoseiam-se em frases, inflamam-se em textos e em expressões avivadas. A crisálida da narrativa teve, nos últimos tempos, períodos difíceis. Esta fase mais não foi do que uma prova centrada, desconcertada, deprimida pela constatação de uma ileteracia tecnológica à qual tenho preguiça de fazer frente. Através desta sinto-me excluída e longe de um circuito que se foi impondo, que me pertence e me atulha de satisfação.
Este silêncio avisou-me, mais uma vez, para a constatação do prazer indescritível da escrita.

2007-04-16

Fim de tarde

Cat Power a permitir-me desenhar pensamentos fugidios, a sonhar este sol noutras paragens, a aquecer-me entre as pedaladas ritmadas de quem é livre. Aumento ainda mais o volume para que ele me circunde concentricamente em satisfação. Repito o refrão várias vezes, e outras tantas vezes, obcecada pelo som, pela tensão que produz, pelo desejo de me amornar nesta claridade de fim de tarde. Desenrolo-me no tempo a passar e na imagem de mim em pleno rio, a ondular suavemente, a sentir o Porto, a ouvir as conversas dos outros. Desprendo as amarras austeras do dia e deixo brilhar o sorriso de quem é feliz.

2007-04-14

Iha de Faro


2007-04-07

Domingo em Lamas




Pela mão meiga da Vivi entro no museu. Há um cheiro desgastado pelas visitas, pela arrumação que provavelmente nunca aspirou a ser rigorosa, metódica e cirúrgica de outros museus. As colecções atraem-nos pela diversidade sem que haja, aparentemente, uma lógica de organização. O mobiliário, a pintura e a cerâmica parecem cobertos por uma manta magnífica de talha dourada.
Ao longo das dezasseis salas que percorremos parece haver a presença constante do seu fundador Henrique Alves de Amorim. Parece que este está presente em cada peça que ali se demora. A sensação é a de que aquele espaço continua a ser um espaço privado e íntimo e que quase se confunde com um quarto /casa onde o seu fundador abrigou os brinquedos mais preciosos. A sua presença é constante. As suas iniciais recordam-nos de que somos meros visitantes e na sala laboriosa dos retratos quase que sugere que nos vigia, que nos olha enquanto telefona, assina documentação ou olha para a terra que impulsionou a crescer.
O Museu de Santa Maria de Lamas é comummente designado por Museu da Cortiça. Há, pois, no meio da exuberância do ouro, um pavilhão imenso com diversas peças de cortiça. É preciso um olhar atento para descobrir a preciosidade dos diversos elementos. Neste pavilhão, onde o sol atravessa o telhado de vidro, tudo parece desamparado e largado. O sentimento maior é o de que este espaço está desvalido e infeliz e que continua a acumular o pó que o seu fundador, falecido em 1977, não pode mais limpar.

2007-03-21

Serém

Respiro. Transpiro e respiro em profundidade o timbre de um sol aberto e claro. Sem pressas e atenta aos nadas do dia. Vou-me libertando das actas, das fichas de inscrição e da base de dados. Vou-me aliviando das histórias dos outros e concentrando-me na minha própria história: a dos projectos e dos desejos. A narração partilhada ao longo do rio, da lama e das silvas é interrompida pelo barulho, ao longe, do comboio que se deita vagarosamente sobre uma linha envelhecida. Deste passeio resulta uma marca no joelho que parece indelével e que permitiu, depois, a criação de uma fábula.
À noite dançamos funaná, tango e mornas. O vapor dessa ebulição é um ambiente sereno, intimista e de conhecimento mútuo que se prolonga no abraço de despedida. Há ainda tempo para explorar e recolher laranjas do vizinho, para espreitar as aromáticas dos nossos anfitriões, para sermos mordidos pelos mosquitos, para sonhar com a figueira que se estende ao longo do jardim e para desejar permanecer por mais tempo, muito mais tempo, em boa companhia.

2007-03-03

Auto-retrato


2007-02-22

Lagos


Hospedamo-nos na casa do Avô Gaivota e da Avó Gracinda. Há um silêncio reconfortante que amortiza os danos de dias desobedientes à regra da serenidade. Apoderamo-nos do espaço e desfiamos as biografias dos objectos: do barco em cima do armário da cozinha, das fotografias nas paredes, do prato trazido de Paris e do banco esguio na marquise.
Auscultamos o mar e procuramos o S. João Baptista como bússola orientadora da rede em que nos emaranhamos. Foi nele que a lançamos e que nos vimos, reciprocamente, através da lente do nascer do dia e das gaivotas revoltosas. A nossa história tece-se com a Ponta da Piedade, com a Meia Praia e o Burgau. Alimenta-se das sensações que renovamos quando experimentamos a segurança da partilha de lugares significativos. Assentam, penso eu, no molde que desenhamos com o risco da construção de narrativas em espaços comuns.

2007-02-14

nevoeiro

O nevoeiro humedece-me as recordações. Transpiro-as numa condução longa, cinzenta e dolorosa. Apoderam-se de mim imagens antigas e tormentosas de saudade. Sinto, ainda, o cheiro dos colares e das coroas de malmequeres que enfiávamos sem pressa, nas sempre longas tardes da infância. Provo agora, e outra vez, o sabor dos elixires de morango que vinham de um país longínquo e que eram desconhecidos nas mercearias da minha terra. Trago-te o riso da altura e o pesar do presente. Sorvo os encantos de uma amizade construída com os centímetros que íamos crescendo ano a ano. E em cada descida de rua, cruzo-me com as imagens de uma mãe desgastada e de uma tia culpabilizada e invejosa da morte. Em cada descida de rua, da nossa rua, há artérias afectivas que pululam, há o rigor e a aspereza da dor. É-me insuportável estimar a rugosidade de uma tarde quente em que tudo se confinou a um silêncio insuportável. Hoje, encerro um sentimento de inquietude e de inconformismo relativamente às conversas por terminar e aos tantos planos por desenhar. Hoje, remato o dia pensando nesse sorriso, nos copos de leite que acompanhavam o almoço, nas experiências aterradoras com os perfumes, nas protecções amarelas das orelhas, nos jogos de elástico e nos postais que trocávamos, durante as férias de Verão, falando das estratégias para conquistar os rapazes. Agora, receio perder as pontas da memória e temo não conseguir conservar os pormenores do teu rosto.

2007-01-29

desejos

Apetecia-me uma torrada e uma meia de leite com cevada.

Bafejo um laboratório de fotografia para ver aparecer as imagens que tenho no rolo a P/B: as fotografias da Batalha, de S. Jacinto, em que experimentei o tripé que me ofertaram, e de Conímbriga.

Desejo mais noites como a de sexta, no bar do lago, a de sábado, na casa do rio e o almoço, no domingo, no Peixaria.
Anseio por um debate sério, disciplinado e frutífero sobre a IVG e almejava que esse debate se traduzisse na construção de uma grelha de leitura do mundo mais flexível, atenta ao outro e sem disfarces de hipocrisia em cada frase.

2007-01-09

Pequenas paixões

Traduzo-me num sorriso manifesto em cada salto no trampolim, em cada levantar de perna com 3Kg nas caneleiras e na troca de pesos que carrego nos braços. No espelho há vários esgares de loucura mas, também, de cansaço manifesto. Há gritos explosivos de catarse. Há o volume alto de uma música, indiscutivelmente e excessivamente má. Formamos círculos e lutamos com um inimigo imaginário, fictício, a quem acertamos ora no estômago, ora na cabeça. Depois, há ainda, o distender dos músculos, a formação de posições de equilibro impossíveis de suster, a constituição de figuras em que manipulamos as pernas e os braços durante algum tempo, demasiado tempo, em posições de força. O resultado é, quase sempre, uma dor atroz em todos os músculos que me impedem de subir e descer as escadas. O fim remete-me, incessantemente, para uma sensação profundamente satisfatória. É assim o Jump Circ, o Local, o Jump Fit, o Body Combat e o Balance, pelos quais me apaixonei.

2007-01-02

Descoberta do amor

A menina deixou os gatos em casa e iniciou jornada com o príncipe. As luzes não estão mais ligadas, e eu que já me habituara à ideia de espreitar diariamente para me certificar da presença. Perscrutava vezes sem conta as dinâmicas da menina vizinha: se já dormia, se estava acordada, se tinha regressado de fim-de-semana. Agora, a menina vizinha empreende novos projectos e eu brindo emocionada às novas aquisições da amiga doce.
A menina enfermeira lançou a sua trança e trespassa, com um olhar feliz e azul de princesa, os presentes adquiridos: um príncipe grande e dois infantes em crescimento. Acolho-os como se fossem, também, presentes para mim. Brindes embrulhados em papel de amizade sincera.
Hoje, brindo à descoberta do Amor!