2007-02-22

Lagos


Hospedamo-nos na casa do Avô Gaivota e da Avó Gracinda. Há um silêncio reconfortante que amortiza os danos de dias desobedientes à regra da serenidade. Apoderamo-nos do espaço e desfiamos as biografias dos objectos: do barco em cima do armário da cozinha, das fotografias nas paredes, do prato trazido de Paris e do banco esguio na marquise.
Auscultamos o mar e procuramos o S. João Baptista como bússola orientadora da rede em que nos emaranhamos. Foi nele que a lançamos e que nos vimos, reciprocamente, através da lente do nascer do dia e das gaivotas revoltosas. A nossa história tece-se com a Ponta da Piedade, com a Meia Praia e o Burgau. Alimenta-se das sensações que renovamos quando experimentamos a segurança da partilha de lugares significativos. Assentam, penso eu, no molde que desenhamos com o risco da construção de narrativas em espaços comuns.

2007-02-14

nevoeiro

O nevoeiro humedece-me as recordações. Transpiro-as numa condução longa, cinzenta e dolorosa. Apoderam-se de mim imagens antigas e tormentosas de saudade. Sinto, ainda, o cheiro dos colares e das coroas de malmequeres que enfiávamos sem pressa, nas sempre longas tardes da infância. Provo agora, e outra vez, o sabor dos elixires de morango que vinham de um país longínquo e que eram desconhecidos nas mercearias da minha terra. Trago-te o riso da altura e o pesar do presente. Sorvo os encantos de uma amizade construída com os centímetros que íamos crescendo ano a ano. E em cada descida de rua, cruzo-me com as imagens de uma mãe desgastada e de uma tia culpabilizada e invejosa da morte. Em cada descida de rua, da nossa rua, há artérias afectivas que pululam, há o rigor e a aspereza da dor. É-me insuportável estimar a rugosidade de uma tarde quente em que tudo se confinou a um silêncio insuportável. Hoje, encerro um sentimento de inquietude e de inconformismo relativamente às conversas por terminar e aos tantos planos por desenhar. Hoje, remato o dia pensando nesse sorriso, nos copos de leite que acompanhavam o almoço, nas experiências aterradoras com os perfumes, nas protecções amarelas das orelhas, nos jogos de elástico e nos postais que trocávamos, durante as férias de Verão, falando das estratégias para conquistar os rapazes. Agora, receio perder as pontas da memória e temo não conseguir conservar os pormenores do teu rosto.