2006-10-28

Na impossibilidade de adormecer…


Não adormeço. Ouço os barulhos da cidade: a recolha do lixo, um barulho longínquo que julgo, ainda, de algum movimento na VCI, gatos e cães em alvoroço. O prédio está em silêncio. A casa em silêncio. Apenas o meu coração me ensurdece. Continua agitado e impede que sinta como confortável a almofada, até o abraço feito almofada. Deixo o tempo passar e negoceio minutos que não dormirei e que se traduzirão, amanhã, em minutos de sofrimento por necessitar de estar acordada. Amanhã, forçar-me-ei desperta, atenta, disponível para a inevitabilidade da agenda. Hoje, continuo a pensar nos sapatos para dançar, na carta que não escrevi, do correio electrónico que não li, das mensagens que não enviei, nesta nova pastilha elástica que acabo de provar, na entrevista que mal preparei, nas milongas que irão chegar, nos gravadores de voz que não agradeci, nas amêijoas em Lagos e na ida, inevitável, aos balcões da Segurança Social.

2006-10-21

Privilégios

Apodera-se, tão violentamente, de mim uma sensação horrível. Quem dera seja passageira e que se decore com dias mais auspiciosos e brilhantes. A sensação é dura e faço questão de a embrulhar nas necessidades do quotidiano. Sinto, a cada dia que passa, que o trabalho que realizo, que defendi com uma vaidade singela, se oriente no sentido de não ser credível, de não ser entendido como necessário e rigoroso. Aquilo que é/foi uma metodologia arrojada, inovadora, diferente no contexto europeu pode não passar de mais uma medida política fascinada com a demonstração de números. Com a demonstração de números pouco tradutores da realidade. Como uma maquilhagem bonita que disfarça o marasmo, a fraqueza, a realidade. Sinto que me vendo, que me vendo ao fazer pequenas cedências, ao flexibilizar o meu comportamento profissional perante as indicações soberanas das chefias. Mas essa é a condição necessária para a minha própria sobrevivência. A condição para poder garantir o pagamento da renda, da luz, do gasóleo, … E é este confronto que me arruína. É a impotência. É a raiva feita desânimo e tristeza. E é a consciência das fracas alternativas e é, sobretudo, a sensação de, no panorama geral, ser uma privilegiada.

2006-10-13

Outras Verdades

Lembro-me de acreditar que o fim do mundo se situava na aldeia da minha avó. Fazíamos duas horas de viagem, entre curvas que serpenteavam o rio Tua, até chegarmos à povoação que não tinha saída. A estrada terminava ali. Lembro-me de ter isto como certo, como adquirido. Esta era a verdade. Impossível de refutar. Essa sensação, ingénua e infantil, transformou-se numa descoberta deliciosa: a de que havia outros caminhos, outras estradas sem saída, outros rios. E aquilo que foi uma decepção alarmante traduziu-se, mais tarde, numa nova concepção.
Actualmente, este confronto com novas concepções é, sempre, sentido como significativo. Por vezes, o grau de significância é acompanhado de uma sensação dolorosa de reajustamento, de quebra. Por vezes, é acompanhado de carícias intelectuais.
Uma verdade inconveniente, de Davis Guggennheim, volta a situar-me nesse fio subtil de confronto com uma dolorosa conjectura. Mas desta vez, não pressinto que dela advenha uma surpresa simpática. Gostaria de voltar a acreditar que o fim do mundo é só o final da estrada, o longínquo, a falta de telefone e muitas e maravilhosas oliveiras

2006-10-05

Letargia


Escolho posições. Moldo almofadas e fico em silêncio à espera. Só a visualizar o que fui, como me senti e sinto. A pensar em como os movimentos diários me derrotam o sono. Que tende, devagar, tão devagar a chegar. É quase sempre determinado em me levar ao cansaço, em me arruinar, em imprimir sensações de pouca disposição. Essa necessidade feita prazer faz-se difícil. E por isso, contabilizo, com tanta, ansiedade a entrada nessa letargia diária.

2006-10-01

Sensações de domingo


Nos últimos silêncios de domingo elaboro balanços e balancetes da semana. Da minha desnorteada viagem semanal em vestir e despir papéis. Como se abrisse e fechasse gavetas. Em cada uma delas há indumentária suficiente para mesclar tons de discurso e aguarelas de sentimentos. Na maioria das vezes há meias horas entre personagens a interpretar. Para alinhavar e não descoser as narrativas. Para me livrar das tantas frases e palavras que se arrumam, que se colam. Para arejar. Para poder ficar de novo disponível.
Nos últimos silêncios de domingo velo um sono profundo e silencioso. Descubro o anoitecer, acendo velas, queimo incenso e arrasto demoradamente, em tom de despedida, as janelas. Ainda sinto o cheiro a cevada, ainda me ocorre pensar em sair.
Nestes últimos instantes receio o tempo passar. Reclamo da inevitabilidade, reclamo com a agenda que me faz sinais demorados, da impressora que dá indicações de iniciar uma longa jornada de impressões.
Atrevida, desligo tudo. E, permito-me arrumar, em lugar desconhecido, a invenção das sensações de domingo.