2007-09-04

Em Tralhariz

As paredes descerram apontamentos de vida simultaneamente dolorosos e adoráveis. O estuque começou, já, a cair e denuncia as antigas formas de construção: ripas alinhadas com uma espécie de barro. As cores estão esbatidas em conformidade com a austeridade de vidas de arruadas contra as dificuldades.
O sol entra e encadeia a mesa das refeições das visitas, o louçeiro, as cadeiras e o frigorífico, que se arruma na sala ao canto das janelas. O sol entra vindo do rio, das escarpas vinhateiras, da luz reflectida no xisto, da paciência dourada das uvas, do muito silêncio de que os grilos se apoderam à noite. A luz cativa o fio dourado das chávenas de chá compradas em Cedofeita e entorna histórias sobre o preço (trezentos escudos) e sobre o modo como se amealhou aquele valor com o fio, também, dourado do azeite.
Não se descobrem excessos na casa. Não se tropeça no inútil e no omisso. Acomodam-se os utensílios, os aspectos e as ferramentas verdadeiramente necessárias e significativas. Tudo se arruma em lugares determinados há mais de quarenta anos: o açucareiro de loiça, as jarras para o vinho, a tenaz da salada e os guardanapos de papel no louceiro da sala. Na cozinha, penduram-se as panelas areadas pelas quatro gerações, arruma-se o queijo no mosqueteiro azul e guardam-se os guardanapos de pano na gaveta do louceiro da cozinha. O armário da cozinha é forte e é de madeira escura. Nele se alinham as canecas das avós, das tias-avós e das bisavós que o tempo e a segurança de mãos maduras não deixaram partir.
Os aspectos significativos espalham-se pela casa. No armário da cozinha ainda se arrumam brinquedos: um pequeno galheteiro azul que eu recebi de prenda quando tinha cinco anos e um conjunto de utensílios para cozinhar (tábua, rolo da massa e escumadeira) que a minha mãe recebeu quando tinha quatro anos. Tudo parece permanecer impassível ao tempo.
Nas paredes da sala há memórias de brincadeiras antigas da minha mãe. Ainda permanece o desenho de uma menina com dedos feitos de riscos e dezenas de contas que indiciavam o percurso vocacional que a minha mãe viria a desenvolver. Contas e contas de somar cujo resultado era uma sucessão, lógica para um criança de três anos, de zeros. Muitos zeros. Redondos. Perfeitinhos. No corredor, ao lado da porta que dá acesso ao terraço onde se secavam figos, há a régua do meu crescimento: pequenas marcações a lápis que a minha avó (também minha madrinha) riscava no cimo da minha cabeça sempre que me achava mais crescida ou sempre que findava o período de férias que lá permanecia. Eu, esticava-me o mais que podia para ver a grande diferença entre riscos. Não me lembro quando deixou de me marcar na parede.
Sentadas na cama do quarto, onde tantas vezes comi batatas fritas ao som de trovoadas, a minha madrinha convida-me a abrir a caixa das cartas de namoro que trocou com o meu avô. Alinhadas, amareladas, envelhecidas. Diz que um dia gostaria que as lesse. Mas eu gostaria, um dia, que ela mas lesse, nesta cama, como se me adormecesse e serenasse das trovoadas ensurdecedoras.