2007-11-08

Sombras

Abeirou-se devagar. Irritada por cada passo inseguro e com nuvens cinzentas no olhar que a impedem de ver as cidade onde criou o filho e a quem ensinou as ruas que agora lhe são desconhecidas. Estranha-as como um estrangeiro.
Aproximou-se e reteve-me, provavelmente, como uma névoa vermelha. Reteve-me para além daquele instante. E a sua imagem cercou-me nos dias e nas semanas que se seguiram.
Indiscretamente bolsou as histórias cegas de sombras, de artérias impiedosas e desalojadas de acolhimento humano. Não reconhece, agora, o norte da cidade, as esquinas de panfletos de actividades e espectáculos coloridos. Não reconhece o caminho. Resta-lhe a memória decantada nos saltos gastos de caminhar e no silêncio indiscreto dos que considera olharem para ela.
Vem aprumada porque as idas ao doutor assim o definem. Perfumou-se com a água-de-colónia que usa nestas ocasiões. Não sabe se a cor do frasco estará, já, desbotada porque continua a reunir a essência dos anos de hábito e uso. O olhar é que desbotou, perdeu a cor e com ele o aroma da segurança.
Vem sozinha porque “as vidas agora são assim”. O filho falou-lhe do autocarro que pára ao lado correio. Sabe o número e imagina o percurso que o autocarro possa descrever. Sabe-o no seu mapa mental e emocional mas não no real. Por isso, não sabe agora onde fica a passadeira para atravessar a rua, nem em que sentido deverá ir.
Precisa de ir ao doutor antes que o perfume esmoreça. Exige uma passada rápida enquanto há luz e as sombras são menos endiabradas. Necessita de ir antes que morram as memórias que a auxiliam a reconhecer a calçada da praça. Força-se a ir para salvar o que das sombras resta.

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