2007-06-11

Névoa azul


Uma e outra vez, deixo-me maravilhar pelo olhar sapiente e azul da existência feita experiência. A interpretação das subjectividades parece traduzir-se numa linha de pensamento tão clara e organizada que nela podem caber todas as compreensões imprescindíveis à exuberância de viver. No prolongamento sucessivo, delicado e renovado das palavras avanço na delineação do que imagino serem as histórias pouco comuns mas que convergem no que penso ser o denominador comum.
Numa manhã quente de Junho, numa das caminhadas a uma cascata inacessível em Travassos, marcamos o trilho ao ritmo de um dos senhores de olhos azuis. Um ritmo avesso a recuos, marcado pelos trilhos de pessoas e de familiares desconhecidos. Soubemos das vidas durante as ceifas, da merenda escassa e da tanta terra cultivada, e hoje abandonada. Ao longo do curso botas calcavam a terra conhecida e reproduziam outras tantas vezes este caminho feito. Soubemos das doenças, dos estudos do neto “estudante”, das viagens a França (onde ainda vive um dos filhos), a Lisboa e a Chaves. Mas a fonte de conhecimento, de tudo o que se afigura como necessário para a sobrevivência feliz, parece encontrar solução e resposta ao longo dos malmequeres, das vacas e do som de moscas agrestes e loucas que atacam os menos desprevenidos e desconhecidos da terra. Com a mesma segurança com que nos aborda encaminha-nos para a sua casa onde nos serve pão com presunto, bolo de iogurte e uma caneca de vinho partilhada a três. Tudo fica em cima da mesa, sem direito a toalha ou outras mordomias, pois com a mesma simplicidade, convicção e altruísmo com que enche a mesa entorna-nos o olhar de acontecimentos, de sorrisos e de uma presença calorosa e genuína. Prometemos voltar, num qualquer Fevereiro, com botas de caminhada para minorar os efeitos da chuva, do frio, da bosta e da lama. Aí, sim, poderemos ver a cascata, diz. É quando ela está mais bonita.
Dias depois, e a 200Km de distância, colido com a mesma genuinidade, com o mesmo tom de azul no olhar e com a mesma solidariedade. As vivências são agora outras, determinadas por uma vida construída de viagens constantes entre Angola e a aldeia de S. João do Peso. Um dos mais importantes projectos de vida expira, agora, longe. A Macaca, exploração de sal e peixe, deve agora ser ruína. Desse projecto ficaram as fotografias arrumadas e catalogadas com o mesmo rigor que permitiu construir um império no ultramar, e que se desbotou num tom sépia. Restam as memórias preciosas e minuciosas que me fazem emocionar no momento de despedida e que não quero mais esquecer. O projecto do sal e peixe foi bombardeado com balas de distância, de insegurança e de regresso à terra natal, há pouco mais de 10 anos. Aos 86 anos nega-se à tentação da televisão e da cadeira com manta e lança-se num novo projecto: ver crescer as oliveiras, os morangos e as frutas nas árvores, mesmo que para isso precise de mais dez anos. Na narrativa não assistem saudosismos rancorosos pelo abandono de cinquenta anos de trabalho. Existe uma profunda compreensão das vicissitudes, das mutações e que se exprimem na simplicidade de aceitar a bagagem experiencial como o lucro do ensaio.
Humildemente, estes acontecimentos determinam pensamentos que me compelem a posicionar num qualquer patamar de insignificância e de respeito pela névoa que encobre de entendimento o olhar azul.

4 Comentários:

Blogger m disse...

......

lindo!!

sabe sempre bem.... vir ao teu blog e ler estes teus lindos textos.

continua sempre assim!!

beijo

5:17 da tarde  
Blogger Nuno Santos Neto disse...

Dois pares de olhos, octogenários e de vidas distintas. Ambos ilustres mas com percursos antagónicos. Aparentemente, apenas partilham o azul e a idade. Na verdade, é impossível dissociá-los de um siamês percurso de luta e histórias.

5:39 da tarde  
Anonymous Anónimo disse...

Hoje, sinto o teu texto a fazer doer-me todos os ossos que tenho. Não sinto frio mas sou capaz de sentir arrepios de saudade. No inverno, a cascata é bem mais bonita. Também a terra é mais presente, mais convidativa.
Experimenta num dia de chuva...vale a pena trazer o rosto lavado de tanta paisagem! Continuarei a visitar a minha Terra. Com os teus olhos e tão bonitas palavras. Beijos.

12:32 da manhã  
Anonymous Anónimo disse...

Não sabes o quanto me emocionas com os teus textos...
Duas histórias encantadoras... de luta pela vida, e... tão distintas...
Vivi a história desse HOMEM de 86 anos bem de perto. Sempre admirei a sua coragem e a sua dedicação a tudo quanto se prometera fazer...
Que esses olhares sapientes e azuis guiem a nossa caminhada...

Um beijo muito carinhoso...

1:57 da tarde  

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