2008-01-24

Nº 187

Chego-me perto para ouvir as árvores crescerem em direcção ao céu.
Recorto pensamentos de perplexidade e procuro com eles coser uma nova manta que me faça acreditar que tudo o que vivo é real. Que me envolva no grande sentimento de acreditar que as árvores estão mesmo cá, que os jarros crescem e que há um silêncio que no verão se transformará em dezenas de grilos.
Espero pelos pirilampos, pelas tardes de verão debaixo da pereira e pela água que aquecerá no tanque. Espreito outra vez pela janela, saio e caminho em direcção ao final do quintal. É mesmo verdade. Os jarros estão cá, a pereira existe e o tanque já acumula água.
Abro infinitas vezes a porta de acesso ao exterior só para sentir o frio de Janeiro, para ver a lua cheia e a chuva que vai humedecendo a lenha para a lareira. Abro a porta só para ver as folhas caírem e sentir o conforto do regresso à casa vazia, nua e despida mas repleta de desejos e planos.

2008-01-06

Estrela da Tarde

Era a tarde mais longa de todas as tardes que me acontecia
Eu esperava por ti, tu não vinhas, tardavas e eu entardecia
Era tarde, tão tarde, que a boca, tardando-lhe o beijo, mordia
Quando à boca da noite surgiste na tarde tal rosa tardia

Quando nós nos olhámos tardámos no beijo que a boca pedia
E na tarde ficámos unidos ardendo na luz que morria
Em nós dois nessa tarde em que tanto tardaste o sol amanhecia
Era tarde de mais para haver outra noite, para haver outro dia

Meu amor, meu amor
Minha estrela da tarde
Que o luar te amanheça e o meu corpo te guarde
Meu amor, meu amor
Eu não tenho a certeza
Se tu és a alegria ou se és a tristeza
Meu amor, meu amor
Eu não tenho a certeza

Foi a noite mais bela de todas as noites que me adormeceram
Dos nocturnos silêncios que à noite de aromas e beijos se encheram
Foi a noite em que os nossos dois corpos cansados não adormeceram
E da estrada mais linda da noite uma festa de fogo fizeram

Foram noites e noites que numa só noite nos aconteceram
Era o dia da noite de todas as noites que nos precederam
Era a noite mais clara daqueles que à noite amando se deram
E entre os braços da noite de tanto se amarem, vivendo morreram

Eu não sei, meu amor, se o que digo é ternura, se é riso, se é pranto
É por ti que adormeço e acordo e acordado recordo no canto
Essa tarde em que tarde surgiste dum triste e profundo recanto
Essa noite em que cedo nasceste despida de mágoa e de espanto

Meu amor, nunca é tarde nem cedo para quem se quer tanto!

(José Carlos Ary dos Santos)