2016-02-29

Leiloado

A roupa fica-lhe agora larga, de um tempo de excessos. Arremessa outro cigarro como quem remata uma peça de um leilão. E ela, atrás da banca: "É de casquinha".

A mão dele... ossuda e esguia. Sistematicamente no cabelo a acomodar o tempo que não passa. E o tempo que falta para passar. Afasta-se, porque sabe agastar a clientela com gestos duros, numa raiva de leiloar peças de uma Foz que se afundou. "Gente miúda no que é nosso."

Dessa Foz, há a lembrança da miudagem e da criadagem de servir. Que o serviu. Que o devia servir sempre. Há a crença dos brindes em cristal e os rumores dos faqueiros banhados. Agora, há o saldo de hábitos que permanecem, mesmo quando tudo é decrepitude.  Sapatos gaspeados à mão, anel brasonado, uma pele de raposa ao pescoço. Outras caçadas. É assim, desde a juventude. Porque da infância não há evidências. Só silêncio. E afastamento. E o cheiro do faisão a assar na cozinha. E ele, já nesse mesmo tom. Autoritário, determinado, insolente. Sem brinquedos de criança, sem o encantamento da curiosidade. Só o abre cartas com punho de prata, o terço dourado, o porta guardanapos.
Curiosidade por ela, sim. Em tempos faustosos. Curiosidade por se sentir abraçado e poder experimentar dormir acompanhado, sem o silêncio assustador. Em lençóis ásperos de linho, a sensação da respiração alinhada.

E ela... Ela, com eyeliner preto perfeito. E também com cigarros que lhe alongam a mão velha. Ela, essa âncora, que não se conforma. Que não se vence.  "Perdeu o brilho, mas é de casquinha", dirá novamente. E nós compramos.

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