2007-08-25

Sobressalto

Há detalhes perturbadores do silêncio que se instala: as mãos adormecidas em posição nenhuma e o olhar cansado das noites inquietas e demasiado quentes. O lençol cola-se como uma papa viscosa e aderente. A almofada regista os pensamentos demasiado dolorosos para serem ditos. São, por isso, omitidos num mutismo que afeiçoa os dias a cinzento e aplica retoques a um Agosto, vertiginosamente, invernoso.
Os sonhos contorcem-se com a alienação das manhãs e há a presença aterradora da noite. Longa. Quente. Sem sons. Confusa. Sobressaltada. Sobressaltada. Sobressaltada. Assaltada de todas as memórias. Demencial. Vazia de implicação de um sono profundo e sereno.
Os dias cosem-se, em seguida, com as malhas da noite e com a rotina. Como um espartilho. Como um espartilho afiado e cortante.
Dos dias quedam-se as desconexões e o boato de uma noite maior. Permanece a sedimentação branca das imagens, das fotografias, dos desejos, dos afectos, dos silêncios conhecidos e amados. Ocorre a decantação vagarosa dos sentidos. De sentir. Deste sentir comprometido nos rostos e nas expressões. Quentes. Longas. Sem sons.
Na decantação confusa dos sentidos, sobressalto-me.

2007-08-12

Viagem

Aparelhei o barco da ilusão
E reforcei a fé de marinheiro.
Era longe o meu sonho, e traiçoeiro
O mar…
(Só nos é concedida
Esta vida
Que temos;
e é nela que é preciso
Procurar
O velho paraíso
Que perdemos).

Prestes, larguei a vela
E disse adeus ao cais, à paz tolhida.
Desmedida,
A revolta imensidão
Transforma dia a dia a embarcação
Numa errante e alada sepultura…
Mas corto as ondas sem desanimar.
Em qualquer aventura,
O que importa é partir, não é chegar.

(Miguel Torga in Câmara Ardente, 1962)