2007-07-26

Desflorar

Ao fim de alguns anos a cadeira foi adoptando os meus trajei tos diários: o casaco agasalha-lhe as costas e o suporte para o braço possui, já, uma ligeira depressão para que o acomode. O casaco toma forma durante toda a manhã, enquanto eu me concentro nos mapas, nas salas e afino algum discurso penalizador ou pedagógico a distribuir aos formandos. Depois, e quando o visto, a forma emproada, altiva e, por vezes, orgulhosa do meu casaco dissolve-se no meu corpo. E passo assim nos corredores: emproado, altivo e orgulhoso.
Arremesso alguns olhares para o interior das salas e procuro que tudo esteja em ordem e sem imprevistos. Acautelo o acidental e o inadvertido. Tomo notas em pequenos papéis que gosto de cortar em quadrados milimétricos. Faço-o em casa, depois do jantar, sozinho à mesa da sala enquanto sinto os passos dela na cozinha. Componho uma pequena torre e arrumo-a no bolso interior do casaco para o dia seguinte. Tomo notas, pois, de tudo e distribuo-as na recepção, nos vigilantes, no centro, na coordenação. Escrevo com caneta azul, naturalmente. Vigio se há salas devolutas com luzes ligadas, controlo se os mapas estão alinhados na parede e se os formandos estão em ordem. E regresso à cadeira.
Com a porta fechada há o silêncio pesado, denso e, amiúde, difícil do meu isolamento. Nas paredes há o essencial: um calendário, o mapa das férias, a lista de contactos e um mapa de utilização de salas. Hoje, um grupo de jovens formandos entrou na minha sala e ofereceu-me uma flor. Inábil, não soube onde acomodá-la. Deixei-a em cima da pilha do lado direito. Traziam, igualmente, um convite para o jantar de final de curso. Dispu-lo na gaveta.
Revolvo os últimos vinte anos sentado nesta mesma cadeira e ouço o mutismo nos corredores. Talvez tenha havido algum convite semelhante que não recordo. Não sei se o terei anotado, algures, num pequeno papel quadrado contudo as gavetas estão vazias de contactos informais. Incapaz de processar os olhares expectantes, afirmo que irei, surpreendido pela promessa que não controlo. No quadro de cortiça fixo, com alfinete verde, a flor que recebi e anseio que não esmoreça o som das palavras na minha sala desolada

0 Comentários:

Enviar um comentário

Subscrever Enviar feedback [Atom]

<< Página inicial