2007-07-05

Ainda por amanhar...

O movimento estará para chegar em breve. Falta, ainda, amanhar a raia e o atum. Espera que cheguem com rapidez. Habitualmente trazem-lhe o peixe à porta em grandes baldes. Os mesmos que trabalham em alto mar. Os homens, escamados pelo sol e pelo sal, param ali para beber uma cerveja, vender o peixe e falar da vida. Param antes e depois do mar. No Inverno é quase sempre de noite e está um vento duro. Agora os dias cresceram e na paragem matinal, na casa de pasto, já se vê ao longe o S. Gonçalo.
Tudo terá que estar pronto às seis: o peixe amanhado, as azeitonas em quartilhos, as batatas descascadas, a fruta à mão para uma eventual sangria e o cabelo arranjado. Atrás do espelho da casa de banho guarda-se um pente para dominar o cabelo da noite pouco e mal dormida. Faz um retoque final com um blush cor-de-rosa que comprou algures numa loja, esquecida pelo hábito de pouco comprar estes objectos.
Às seis horas abre escrupulosamente. Como se fosse esta a sua religião, o seu confessionário e a sua cruz. Monta e desmonta mesas, põe pratos, fala francês, inglês, um pouco de alemão e português. Entre as conversas em línguas estrangeira vai adicionando, como se de uma receita se tratasse, palavras e expressões em português, que provocam o sorriso nas mesas vizinhas. Condimenta o seu dia. Apimenta-o, enquanto soma totais a receber.
Serve mais sardinhas e pão, douradas e outros pescados que vai filando a um cardápio mental. Sabe-o há anos e anos de cor, desde o tempo em que era outro o patrão. No menu servem-se, e como que num desabafo mal contido, as reclamações contra a pouca agilidade das empregadas, que mudam como as marés, talvez por não conseguirem suportar as horas ininterruptas de trabalho.
Não há tempo para ir espreitar o mar que se anuncia do outro lado da estrada. Não sei se algum dia terá estendido uma toalha e permitido que o sol a aquecesse, que se autorizasse a deambular por pensamentos difusos e conflituosos disseminados pelo vento e pela areia incrustada na pele. Não há tempo. Falta pôr os talheres e os pratos na mesa 1 e na mesa 5 já pediram a conta.
Faltou tempo para acompanhar as dúvidas e as incertezas da filha adolescente. No mesmo enfiamento há, no olhar, o desalento por nunca ter amamentado ou caminhado de mão dada em direcção à escola primária. Ela cresceu mais rápido do que as mudanças de ementa. E por isso, o seu quotidiano continua colado a um ritual de que é impossível livrar-se.
Às duas da manhã, recolhem-se as mesas e as cadeiras de fora, alinha-se o aquário quase vazio enquanto se aliena das dores insuportáveis e deixa que as rugas, as olheiras, os sulcos cravados na tez descolorem o cor-de-rosa madrugador.
Num gesto, quase de certo, descontrolado e irreflectido permite que a cabeça tombe nos braços sobre a mesa, ainda com alguns pratos por levantar. Acaba por adormecer e sonha com o que estará para chegar em breve: a raia, o besugo e as conquilhas. Terão que estar amanhados às seis porque a casa abre, invariavelmente, a essa hora e o movimento estará para chegar em breve.

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