2007-10-21

Cântico Negro

"Vem por aqui" - dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...

A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre a minha mãe

Não, não vou por aí!
Só vou por onde Me levam meus próprios passos...

Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...

Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
- Sei que não vou por aí!

(José Régio)




2007-10-06

Saída




Separo-me das folhas arrumadas na gaveta que tinha como minha. Separo-me dos risos, da persistência do riso e do granulado das histórias descobertas. Separo-me e levo um saco, um saco de plástico frágil, onde arrumo os meses de trabalho e de dedicação.
Passo a mão na gaveta e limpo-a das pequenas parcelas de papel, dos instantes pintados por canetas e de algumas migalhas de bolachas partilhadas.
Despeço-me sem me querer despedir. Avanço firme, com o saco na mão, com o peso do saco, com a tensão nos músculos inerente à saída. Avanço em direcção à rua sem evitar a dor na garganta que me suspende a visão sensata e clarividente. Executo acções deprimidas e confrontadas com a aspereza do desafio que me espera.
Espero, com a saída, financiar novos projectos marcados por campanhas de partilha, de fome de construção de um projecto comum mais exigente, envolvido e valioso. Financio-me enquanto pessoa fora dos sistemas profissionais ainda que deseje incluir-me satisfatoriamente na organização do trabalho.
Saio num dia quente, claro, descarado. Há um calor intenso que não se distribui uniformemente pelo corpo. Saio num dia quente e aproveito o final de tarde deitada no silêncio e na escuridão. Fecho a janela, ligo a televisão sem som, cubro-me com uma manta e candidato-me ao Inverno, como se adivinhasse os dias cinzentos e frios que se aproximam.