2008-09-27

Afectos

Apaziguo-me numa rede. Consistente. Mesclada de pessoas, de vivências, de abordagens, de sentidos, de conteúdos e de construções. Sossego-me nesta rede que me/se sustem como a aranha que permanece no tecto do quarto ou a colmeia de vespas que se colou à entrada do portão. A aranha e a colmeia permanecem intocáveis, seguras e consistentes, tal como a minha rede.
A minha rede pessoal... onde adormeço e me dispo sensível em choro e em riso matizado. Uma rede que insiste na transformação dos dias de inverno, que não chegam só com o entardecer e as mantas no sofá, em solos alegres de margaridas; que se tece de projectos absortos no futuro e em dias feitos de pausas, de telefonemas em pedido de auxílio, em conversas de nada. Sobre “anda”. Sobre “vamos”. Sobre nós. Intervalos no quotidiano para sorrir.
Apoio-me, suporto-me e construo-me. Alinhavo vistos de permanência em silvos descortinados de leveza quando tudo parece/parecia desmoronar e agradeço os afectos.

2008-09-17

Bunga





Tenho desejado uma dose de Bunga ou Pau Candeia (árvore endémica de S. Tomé e Príncipe com propriedades soníferas) para adormecer ou expiar a lista de acontecimentos indesejáveis...

2008-09-09

Doce, doce... Amiga, doce, doce.




Aterrámos e as galinhas afastam-se...
S. Tomé, os miúdos, os miúdos pequenos negociantes e os miúdos aspirantes a guias turísticos recebem-nos com urgência. Há sempre meninos que nos acompanham com serenidade, candura e com uma humildade desconcertante.
A humidade cola-se à roupa e descolo-me numa inicial desolação que se destila, algumas vezes, em lágrimas. As crianças caminham descalças, carregam fruta-pão e grandes jacas à cabeça, tomam banho nas ribeiras enquanto as mães lavam a roupa e a estendem depois nas pedras e nas bermas dos caminhos. Os mais pequenos adormecem nas costas das mulheres – mães, mulheres – amigas ou irmãs mais velhas. As crianças parecem pertencer a todos e em simultâneo serem independentes e só dependerem realmente dos coqueiros, dos caroceiros, das mangueiras e do mar que os alimenta.
Nadam livremente e improvisam canoas com troncos amarrados. Ensaiam, a brincar, a vida no mar, nas pirogas feitas de ocâ e na pesca. Pescam com paus, apanham búzios da terra que assam alinhadamente como espetada e vendem banana assada na estrada. Constróem carros e bicicletas de madeira, dançam kuduro e brincam ao foguetão: pegam fogo a capim dentro de um lata sem fundo e correm girando sobre eles próprios até as labaredas surgirem. Pedem doces ou material para a escola e correm energicamente atrás dos carros como se fosse uma labareda de crianças. E é esta a imagem que arde docemente, docemente em fogo de inquietude.

2008-05-06

Revisitar a infância


(Azeitão, 2007)

2008-01-24

Nº 187

Chego-me perto para ouvir as árvores crescerem em direcção ao céu.
Recorto pensamentos de perplexidade e procuro com eles coser uma nova manta que me faça acreditar que tudo o que vivo é real. Que me envolva no grande sentimento de acreditar que as árvores estão mesmo cá, que os jarros crescem e que há um silêncio que no verão se transformará em dezenas de grilos.
Espero pelos pirilampos, pelas tardes de verão debaixo da pereira e pela água que aquecerá no tanque. Espreito outra vez pela janela, saio e caminho em direcção ao final do quintal. É mesmo verdade. Os jarros estão cá, a pereira existe e o tanque já acumula água.
Abro infinitas vezes a porta de acesso ao exterior só para sentir o frio de Janeiro, para ver a lua cheia e a chuva que vai humedecendo a lenha para a lareira. Abro a porta só para ver as folhas caírem e sentir o conforto do regresso à casa vazia, nua e despida mas repleta de desejos e planos.

2008-01-06

Estrela da Tarde

Era a tarde mais longa de todas as tardes que me acontecia
Eu esperava por ti, tu não vinhas, tardavas e eu entardecia
Era tarde, tão tarde, que a boca, tardando-lhe o beijo, mordia
Quando à boca da noite surgiste na tarde tal rosa tardia

Quando nós nos olhámos tardámos no beijo que a boca pedia
E na tarde ficámos unidos ardendo na luz que morria
Em nós dois nessa tarde em que tanto tardaste o sol amanhecia
Era tarde de mais para haver outra noite, para haver outro dia

Meu amor, meu amor
Minha estrela da tarde
Que o luar te amanheça e o meu corpo te guarde
Meu amor, meu amor
Eu não tenho a certeza
Se tu és a alegria ou se és a tristeza
Meu amor, meu amor
Eu não tenho a certeza

Foi a noite mais bela de todas as noites que me adormeceram
Dos nocturnos silêncios que à noite de aromas e beijos se encheram
Foi a noite em que os nossos dois corpos cansados não adormeceram
E da estrada mais linda da noite uma festa de fogo fizeram

Foram noites e noites que numa só noite nos aconteceram
Era o dia da noite de todas as noites que nos precederam
Era a noite mais clara daqueles que à noite amando se deram
E entre os braços da noite de tanto se amarem, vivendo morreram

Eu não sei, meu amor, se o que digo é ternura, se é riso, se é pranto
É por ti que adormeço e acordo e acordado recordo no canto
Essa tarde em que tarde surgiste dum triste e profundo recanto
Essa noite em que cedo nasceste despida de mágoa e de espanto

Meu amor, nunca é tarde nem cedo para quem se quer tanto!

(José Carlos Ary dos Santos)