2009-07-16

Vendaval

Chamo-as e convido-as a sentarem-se.
Sopram ventos diferentes, de estações diferentes. A mais velha veste-se de verão colorido e a mais nova de inverno cru e carregado. Sentam-se e desfiam a história pesada de que não têm água em casa e de quem ainda toma banho em bacias, que enchem com baldes. Vertem a história para a minha mesa e afogam-me na impossibilidade de ver qualquer luz.
A mais velha explica que a falta de saber ler ou escrever lhe perturba a definição de alternativas. Está impedida de trabalhar, de contestar e de fazer reclamações. A mais velha, que em todos os momentos da história me faz questionar se será efectivamente a mãe, delega e atribui a responsabilidade da casa, de encontrar dinheiro para a casa, à mais nova. Ela, a mais velha, com a camisola colorida, justifica um amor impróprio e abusivo por causa deles, dos filhos. Por isso, se deita com ele, por isso “ me ponho debaixo dele”.
A água falta em casa. Como também parece faltar a frescura da definição de papéis.
A mais nova, e que por vezes me parece ser a mãe, veste um casaco escuro e quente e é nele que esconde as agruras de banhos difíceis e perturbadores. Trabalha das dez às dez e diz-me ter acabado de assinar um papel em branco para o patrão. Não sabe para que era, não sabe para que serve. Talvez não tenha tempo, entre idas à fonte, para questionar o conteúdo que se escreverá na folha. Talvez não tenha tempo para pensar e para questionar o que está determinado. A mãe deita-se com ele, por causa deles. Então, cabe-lhe a ela ir buscar a água e manter a pequena ordem no lar.
A mais velha, mantém sempre um auricular colado à orelha que, por sua vez, está ligado a um telemóvel grande e vistoso. É este auricular que parece impedi-la de me ouvir, de ouvir o que gira à sua volta. Parece ser este o fio que a liga ao outro homem, por quem desistiu de aprender a ler. Foi por amor, disse. Por isso, não pode trabalhar. Porque não sabe ler. Por causa do amor…
A mais nova, está de luto. Morreu a infância e veste-se, agora, de uma adultez ingénua e comovente.
Sopram ventos desorientadores.

2009-01-15

Fôlego…Sem fôlego.

Ofegante. Ofegante.
Por estes dias, por estes meses, nem os raios de sol nem os passos difíceis do tango são suficientes para conter o sentimento de incredulidade e de descrença. Por estes dias, por estes meses, confronto-me com a aspereza crua da morte. A morte de quem é próximo a quem quero bem.
Conheço, ainda, um sentimento de ferocidade e de irritação perante o defeito de compromisso, de lealdade e saboreio, sem tempo e sem catarse, o gosto da desilusão.
Nestes dias, demorados e pardos, dedico-me com concentração ao desemprego, à falta de condições, à pobreza e à exclusão. E isso, tudo isso, me desconcentra, me culpa e me empobrece dos gozos vivenciais: as alfaces que nascem nos vasos, a lareira a arder, a doce companhia de um doce companheiro, as caminhadas por fazer, o gatinhar do Gabriel, a Júlia sentada dentro da barriga da mãe, o Rodrigo a descobrir a velocidade das ventoinhas, as barrigas das minhas amigas a crescer, os lanches ao final da tarde, os planos para as viagens, as “Brandas” por fazer, as conversas sem termo, as noites dançantes, os jantares no Sardão, os filmes, as exposições, as fotografias...