2020-06-26

Poema bonito


Melancolia e vento a empurrar na direção de acertos.
Fúria a escorrer em palavras novas de paz.
Concórdia de nos amanhecermos tão confiáveis.

2020-06-22

Promessa


Imaginou-se a entrar na igreja da padroeira, vestida de branco. Como presente, na entrada concretizada em direção ao altar, o rapaz de boas famílias. E nela só essa redenção da aliança, do marido impecável e dos filhos que cuidaria. Filhos em escadinha. Vestidos de igual. Sentia já o odor da carne a assar no forno, nas manhãs de domingo que chegariam. A folha de louro, o azeite da aldeia, a carne Barrosã. A mesa com toalha de linho. Ervilhas de quebrar arranjadas para acompanhar. Limonada com hortelã. Com o rapaz, novos hábitos. Com o rapaz, esse sonho da perfeição. Tudo imaculado. Santos centenários com roupinha de cambraia, quadros a óleo alinhados em galeria e a as gavetas com tesouros trazidos da casa da aldeia: a concha de prata e o vestido para o batismo, os lençóis pequeninos bordados com o monograma da família. O entusiasmo da primeira ida à igreja. O prazer de irem com as crianças comungar. Cabelo perfeitamente alinhado. Só rapazes. Sempre de calções, independente da estação do ano. As vizinhas do prédio dos pais a comungarem também da procissão dessa ascenção. Maravilhados. Mas depois, a cronometragem dos dias. Esse compasso que molesta. Há agora sempre um andamento cadenciado que explode o coração. Uma cronometragem de medo e de frustração, e de tanta raiva e desespero. Há uma pauta a ditar a corrida que se pretende ágil e arrumada , aprumada e delicada. Mas só caos e desordem! À noite, o som dos dentes a ranger e os dentes a partir, a fissurar. Segue-se o som do despertar, que se quer rápido. Os lanches na lancheira, as mochilas, os casacos, o leite a aquecer, os cereais já espalhados. Fica a desordem no imperativo de ligar o carro, apertar cintos, parar carro, desapertar os cintos, transportar mochilas, beijinhos, ligar o carro, acelerar sem memória do caminho percorrido, parar. O confronto com a falta de casaco, da lancheira. A culpa: do beijo a correr, da ansiedade que se alicerçou, da merda do caminho e da multa para pagar. Há a cabeça em dor e aos trambolhões, o ruído permanente das caixas de legos a serem viradas, enquanto ela própria se vira do avesso e não se reconhece. O medo da janela entreaberta. O cabelo por lavar, as unhas por arranjar, as sacas de compras para carregar. O medo, porque a janela pode estar entreaberta. A raiva da roupa que cheira a vomitado e que se acumula no cesto. A frustração. O cabelo por lavar, as unhas só cortadas, não arranjadas. Tão diferente do caminho que a levou ao altar. Aos domingos, o cheiro a assado enjoa-a e as ervilhas para arranjar enervam-na. E já é hora de vestir, porque a porra da missa urge e todos esperam a procissão. Agora, enquanto sobe em direção ao altar para comungar, confessa-se à padroeira daquilo que sente como erro e do engano na promessa concedida.

Das palavras que salvam.


Sou da escrita escondida nas matrizes de enquadramento lógico, na teoria da mudança e na estatísticas dos resultados e das realizações dos projetos. Sou das palavras que trazem oxigénio, que salvam e reparam, mas que ficam perdidas em documentos sem nome e sem propósito, sem assinatura, esmorecidos pela roupa por estender e das sopas por fazer.




2018-07-06

Estendais


Todos os dias 3 estendais onde estende o silêncio, ainda as nódoas de sopa nos babetes, a cinza que por vezes cai sem querer e as horas que chegam para os ir buscar à escola. Fica sem tempo de banho, de amaciador no cabelo, de roupa lavada. Porque a pilha aumenta e é já ali e volto para casa.  De 20 em 20 cigarros, conta o tempo à janela e acumula as sacas das compras que ele traz para casa. Com ele, a fuga da obrigatoriedade de se desenfronhar. Com ele, a surpresa de três pequenos para vestir e alimentar. Com ele, os estendais de roupa lavada, estendida, apanhada, passada, arrumada. Mas, dele, o velho hábito de se esquecer de camisas engomadas e penduradas, do odor de fraldas lavadas e de quem fez o vinco perfeito nas calças.

A perna esquerda de Tchaikovski


Aparentemente, um ensaio de ballet. O pianista, o “afinador de pianos”, confirma que acederemos à trajetória pessoal da bailarina e do que antecede e precede cada apresentação em palco. Vemos como se calça, e só calçará o pé direito, como aperta as fitas de seda em torno do tornozelo. Explica como coser e voltar a coser os elásticos que a acompanham desde sempre. Saberemos da infância, das horas intensas de repetições para a perfeição, das lesões duras, das conversas com os pés e das tantas promessas de se curvarem a uma última atuação. O espetáculo "A Perna Esquerda de Tchaikovski", tem texto e encenação de Tiago Rodrigues, música de Mário Laginha e interpretação de Barbora Hruskova, bailarina da Companhia Nacional de Bailado. Em palco, repetirá trechos de “Giselle", de quando se despediu e terminou a carreira, do “Lago dos Cisnes”, de “Romeu e Julieta", … Sempre e só com o pé direito calçado. Emergirá sempre a voar, como se não existisse dor, como se não estivesse unicamente apoiada num único pé, e assim acedemos a esse universo interior, e vemos pela primeira vez as estrelas de que nos fala, quando em criança fantasiava a partir da sua janela. Créditos:TNSJ

2016-05-17

A amiga genial

No bairro, duas raparigas assistem a violência e confusão, querendo diferente. O conflito sempre presente entre a pobreza e o poder. O poder de poder comprar, mandar fazer, mandar estudar, ou não mandar. E o regresso a casa para cuidar dos mais pequenos. Ou a entrada na oficina, onde ousa pensar em  construir, manualmente, sapatos. Inovar para sobreviver. Mas como se incorpora querer fazer diferente?
Nesses sapatos já calçados, depois de imaginados e cosidos a mão, o símbolo do poder e de uma submissão que não se arqueia. Ao longo das páginas, a força de uma pequena rapariga agreste, quase selvagem e inteligente. A outra rapariga, doce e delicada, em transformação. Em aquisição. Em desocultacao.
No bairro, onde quase vivemos durante 200 páginas, o desígnio da submissão para sobreviver.  E a única submissão aceitável parece ser o assumir o papel de mulher antes do tempo, transformando-se assim em senhora que poderá, eventualmente, poder decidir. Mas como decidir quando o seu esforço é calçado pelo inimigo?

2016-04-20

Pó de carvão

Como me cubro? Como enfrento a rua? É só avançar até a padaria! Espero... Não paragens, comentários, silêncios e bocas em suspiro.
Suspiro-te com raiva... por cá fiquei, e tu no elevador cavernoso. Só, e ainda, frio.
A neve a chegar e, quando vier, como acenderei a estufa? Como buscarei lenha? Como  acenderei o fogão para aquecer água? Ainda a água a ferver. A mesma água que é preciso levar para a banheira do pequeno. Como me cubro em noite fria? A sirene volta a tocar e chama outros homens. Persistente, mordaz, insatisfeita. E tu, num elevador. Enjaulado, animalizado.
É só subir, subir até a padaria.
Seria só subir até a superfície, para respirares. Eu, cá estaria com água quente no fogão. Aqueci-a com a lenha que trouxe do monte dos castanheiros. Não sozinha. O pequeno comigo, no peito com o lenço de flanela.
Aqui estaria para te refrescar do carvão. E, com esse pó me cobriria na felicidade de te cuidar.

Dou-te os meus pés


Dou-te os meus pés.
E com eles descreverás adornos, e ganchos, e contornos. Irás circunscrever,  com batidas mais ou menos fortes,  os teus rodeios e neles acharei formas novas de me movimentar, de existir, de me relacionar.
Dos meus pés, aceita essa bússola em como te seguirei e em como estarei alinhada. Conectada. Colada, a ler o teu corpo e a tuas indicações. Do que dizem quando a "posição do ombro", da mão fechada sobre a minha, da presença da mão aberta nas minhas costas. E a minha mão, também a segurar-te, enquanto me seguro a ti e te dou em absoluto a minha presença silenciosa e alerta. Consciente.
Dos teus pés, sinto que preciso travar esse ímpeto de querer ser eu a indicar caminho. E assim,
Dou-te os pés para que, com eles, possas coreografar novos arranjos de movimentos e aprimorar o meu sentido de entrega.

Créditos: E. Jasmim


Tábua rasa


Sufoco, se não a encontra. Se não se encontram.
Fará tábua rasa de todas as historietas com as  outra mulheres. Que teve, em lençóis de linho.
E de novo, com ela, na rua da picaria...
Em mesa de pinho e em tábuas com odores intensos de ruralidade, esse reencontro tão líquido e em liberdade. Depois da apresentação dos queijos, do presunto e do vinho,  vertem o que viveram no hiato entre eles.
E se demorarão a ver o queijo a ser fatiado e o requeijão a ser embalado. Terapeuticamente. E pensam em como curar-se, lentamente e demoradamente.

2016-02-29

Leiloado

A roupa fica-lhe agora larga, de um tempo de excessos. Arremessa outro cigarro como quem remata uma peça de um leilão. E ela, atrás da banca: "É de casquinha".

A mão dele... ossuda e esguia. Sistematicamente no cabelo a acomodar o tempo que não passa. E o tempo que falta para passar. Afasta-se, porque sabe agastar a clientela com gestos duros, numa raiva de leiloar peças de uma Foz que se afundou. "Gente miúda no que é nosso."

Dessa Foz, há a lembrança da miudagem e da criadagem de servir. Que o serviu. Que o devia servir sempre. Há a crença dos brindes em cristal e os rumores dos faqueiros banhados. Agora, há o saldo de hábitos que permanecem, mesmo quando tudo é decrepitude.  Sapatos gaspeados à mão, anel brasonado, uma pele de raposa ao pescoço. Outras caçadas. É assim, desde a juventude. Porque da infância não há evidências. Só silêncio. E afastamento. E o cheiro do faisão a assar na cozinha. E ele, já nesse mesmo tom. Autoritário, determinado, insolente. Sem brinquedos de criança, sem o encantamento da curiosidade. Só o abre cartas com punho de prata, o terço dourado, o porta guardanapos.
Curiosidade por ela, sim. Em tempos faustosos. Curiosidade por se sentir abraçado e poder experimentar dormir acompanhado, sem o silêncio assustador. Em lençóis ásperos de linho, a sensação da respiração alinhada.

E ela... Ela, com eyeliner preto perfeito. E também com cigarros que lhe alongam a mão velha. Ela, essa âncora, que não se conforma. Que não se vence.  "Perdeu o brilho, mas é de casquinha", dirá novamente. E nós compramos.

2014-02-01

Inevitável

Não vivo sem escrever. As frases formam-se na cabeça e ando a namora-las, a imaginar como ficariam no papel. Por estes dias, por estes anos, tenho-as recalcado e fingido que não me assinalam textos, até me esquecer e se transformarem, unicamente, na sensação de que me falto com alguma coisa.  Talvez me tenha faltado com essa sensação atroz e desafiante que enriquece o que vivo.