2016-05-17

A amiga genial

No bairro, duas raparigas assistem a violência e confusão, querendo diferente. O conflito sempre presente entre a pobreza e o poder. O poder de poder comprar, mandar fazer, mandar estudar, ou não mandar. E o regresso a casa para cuidar dos mais pequenos. Ou a entrada na oficina, onde ousa pensar em  construir, manualmente, sapatos. Inovar para sobreviver. Mas como se incorpora querer fazer diferente?
Nesses sapatos já calçados, depois de imaginados e cosidos a mão, o símbolo do poder e de uma submissão que não se arqueia. Ao longo das páginas, a força de uma pequena rapariga agreste, quase selvagem e inteligente. A outra rapariga, doce e delicada, em transformação. Em aquisição. Em desocultacao.
No bairro, onde quase vivemos durante 200 páginas, o desígnio da submissão para sobreviver.  E a única submissão aceitável parece ser o assumir o papel de mulher antes do tempo, transformando-se assim em senhora que poderá, eventualmente, poder decidir. Mas como decidir quando o seu esforço é calçado pelo inimigo?

2016-04-20

Pó de carvão

Como me cubro? Como enfrento a rua? É só avançar até a padaria! Espero... Não paragens, comentários, silêncios e bocas em suspiro.
Suspiro-te com raiva... por cá fiquei, e tu no elevador cavernoso. Só, e ainda, frio.
A neve a chegar e, quando vier, como acenderei a estufa? Como buscarei lenha? Como  acenderei o fogão para aquecer água? Ainda a água a ferver. A mesma água que é preciso levar para a banheira do pequeno. Como me cubro em noite fria? A sirene volta a tocar e chama outros homens. Persistente, mordaz, insatisfeita. E tu, num elevador. Enjaulado, animalizado.
É só subir, subir até a padaria.
Seria só subir até a superfície, para respirares. Eu, cá estaria com água quente no fogão. Aqueci-a com a lenha que trouxe do monte dos castanheiros. Não sozinha. O pequeno comigo, no peito com o lenço de flanela.
Aqui estaria para te refrescar do carvão. E, com esse pó me cobriria na felicidade de te cuidar.

Dou-te os meus pés


Dou-te os meus pés.
E com eles descreverás adornos, e ganchos, e contornos. Irás circunscrever,  com batidas mais ou menos fortes,  os teus rodeios e neles acharei formas novas de me movimentar, de existir, de me relacionar.
Dos meus pés, aceita essa bússola em como te seguirei e em como estarei alinhada. Conectada. Colada, a ler o teu corpo e a tuas indicações. Do que dizem quando a "posição do ombro", da mão fechada sobre a minha, da presença da mão aberta nas minhas costas. E a minha mão, também a segurar-te, enquanto me seguro a ti e te dou em absoluto a minha presença silenciosa e alerta. Consciente.
Dos teus pés, sinto que preciso travar esse ímpeto de querer ser eu a indicar caminho. E assim,
Dou-te os pés para que, com eles, possas coreografar novos arranjos de movimentos e aprimorar o meu sentido de entrega.

Créditos: E. Jasmim


Tábua rasa


Sufoco, se não a encontra. Se não se encontram.
Fará tábua rasa de todas as historietas com as  outra mulheres. Que teve, em lençóis de linho.
E de novo, com ela, na rua da picaria...
Em mesa de pinho e em tábuas com odores intensos de ruralidade, esse reencontro tão líquido e em liberdade. Depois da apresentação dos queijos, do presunto e do vinho,  vertem o que viveram no hiato entre eles.
E se demorarão a ver o queijo a ser fatiado e o requeijão a ser embalado. Terapeuticamente. E pensam em como curar-se, lentamente e demoradamente.

2016-02-29

Leiloado

A roupa fica-lhe agora larga, de um tempo de excessos. Arremessa outro cigarro como quem remata uma peça de um leilão. E ela, atrás da banca: "É de casquinha".

A mão dele... ossuda e esguia. Sistematicamente no cabelo a acomodar o tempo que não passa. E o tempo que falta para passar. Afasta-se, porque sabe agastar a clientela com gestos duros, numa raiva de leiloar peças de uma Foz que se afundou. "Gente miúda no que é nosso."

Dessa Foz, há a lembrança da miudagem e da criadagem de servir. Que o serviu. Que o devia servir sempre. Há a crença dos brindes em cristal e os rumores dos faqueiros banhados. Agora, há o saldo de hábitos que permanecem, mesmo quando tudo é decrepitude.  Sapatos gaspeados à mão, anel brasonado, uma pele de raposa ao pescoço. Outras caçadas. É assim, desde a juventude. Porque da infância não há evidências. Só silêncio. E afastamento. E o cheiro do faisão a assar na cozinha. E ele, já nesse mesmo tom. Autoritário, determinado, insolente. Sem brinquedos de criança, sem o encantamento da curiosidade. Só o abre cartas com punho de prata, o terço dourado, o porta guardanapos.
Curiosidade por ela, sim. Em tempos faustosos. Curiosidade por se sentir abraçado e poder experimentar dormir acompanhado, sem o silêncio assustador. Em lençóis ásperos de linho, a sensação da respiração alinhada.

E ela... Ela, com eyeliner preto perfeito. E também com cigarros que lhe alongam a mão velha. Ela, essa âncora, que não se conforma. Que não se vence.  "Perdeu o brilho, mas é de casquinha", dirá novamente. E nós compramos.